Este texto foi produzido para a exposição Excesso Chamalo na Solar - Galeria de Arte Cinemática por ocasião da 30ª edição do Curtas Vila do Conde, Festival Internacional de Cinema, de 9 a 17 de Julho de 2022.
Exposição realizada no âmbito do ano de França/Portugal.
Teaser da exposição
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Marie Losier
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Como falar da obra de Marie Losier sem evocar
a sua câmara Bolex? Essa extensão do olho e da mão, com que sempre capturou, em
película e em 16mm, as personagens feéricas que caracterizam o seu cinema. A
profundidade do medium e o seu grão reconhecível transportam-nos
intrinsecamente para atmosferas barrocas e antiquadas, um lugar mágico da
memória onde a experimentação, a necessidade visceral de filmar e o amor pela
película marcam a diferença.
A artista tece uma obra polimórfica que se desenvolveu nos últimos anos como complemento do seu cinema. Permanece, todavia, fiel ao seu modo de criar, dos monótipos que acolhem cada vez mais as cores, a um monstro de tecido taxidermizado, passando pelas séries fotográficas de férias falsas ou pelas instalações esculpidas em torno de antigos rushes. Marie Losier faz retratos. Para além das pessoas, que gostamos de reconhecer, faz retratos da vida, de uma sociedade, de uma margem que poderia tornar-se norma se todos ousassem sonhar mais. Revela singularidades reconfortantes de discernir como estandartes de uma liberdade que ainda respira. O desenho e as imagens fixas fazem parte do seu trabalho há muito tempo, e Losier oferece-as para serem vistas cada vez mais frequentemente. E isso é prazeroso.
A artista pensa a exposição como uma obra por direito próprio, uma matéria por modelar, um híbrido entre um campo de rodagem, um fim de festa e uma revalidação do acto criativo. Banal como um doce de natas que se torna ecrã, caixas decoradas que acolhem números humorísticos em loop, cortinas de teatro que nos olham com um ar melancólico. Há um vaivém frequente entre a vida verdadeira e a vida encantada das obras. Apagam-se as fronteiras.
Amigos, amantes, mentores e cúmplices guiam a festa e desenham a obra. Aos poucos, durante quase 20 anos, de Nova Iorque a Paris, via Berlim, todos eles têm contribuído para o crescimento de uma tribo, um lar de criadores. Conservam, copiosamente, uma liberdade para ver e para pensar e a espontaneidade de fazer. Brincam a sério, como fazem as crianças.
Marie Losier gosta de pessoas, de orquestrar encontros, de oferecer e aprender com todos. Por isso, não é surpreendente que, para Excesso Chamalo, tenha convidado o artista colectivo David Legrand. Têm ambos a mesma filosofia, um trabalho generoso como curso de vida, necessário e em comunidade, uma ternura pelos gestos partilhados. Encontram-se no seu activismo, na sua preocupação pelos outros, por aqueles que não cabem numa caixa. As referências e as explosões de riso vão de par, os projectos comuns fazem ricochete.
Marie e David utilizam o cinema como medium, enquanto filmadora e filmador. Não se trata de fazer cinema, mas sim de mergulhar na ficção. A partir daí, todas as imaginações e disfarces são possíveis, e os delírios imperiosos. No seu corpete de cetim, um tenor majestoso convida-nos a comer-lhe a peruca; magnífica encarnação, ele é o mestre cor-de-rosa, o maestro de colher na mão que nos impulsiona para as fragrâncias xaroposas de um sonho acordado. Apresentada logo à entrada da exposição, na La Galerie du Cartable1, esta obra comum abre o olhar e o apetite. Excesso Chamalo ganha assim todo o sentido, acalenta os desejos enquanto a deambulação se envolve numa suave doçura.
O que emerge no universo dos dois artistas é a independência, o desabrochar de uma visão generosa e de mente aberta que se liberta das regras e do colete-de-forças normativo, retirando, simultaneamente, prazer do trabalho e da partilha dos pensamentos, das ideias e das loucuras. As suas práticas também se juntam num interesse comum pelos dispositivos de low-tech, numa certa bricolage, no fardamento, na performance e na transformação. Constroem encenações e um cinema poético cuja força é, justamente, sorvida no seu aspecto de faça-você-mesmo, simples, cheap, em jeito de acampamento.
Na instalação Chewingum Bomb, que David Legrand realiza para a exposição, estamos, justamente, perante a questão de um ser compósito ligado ao cinema através de ecrãs de marshmallow, uma passagem entre passado, presente e futuro, feita de vários elementos, incluindo um diálogo fictício2 entre Duras e Barthes. Há muito tempo que o artista cultiva o hibridismo nas suas investigações. Trabalha na fabricação de um fraseado, na transformação da voz, e elabora uma linguagem também ela compósita.
A artista tece uma obra polimórfica que se desenvolveu nos últimos anos como complemento do seu cinema. Permanece, todavia, fiel ao seu modo de criar, dos monótipos que acolhem cada vez mais as cores, a um monstro de tecido taxidermizado, passando pelas séries fotográficas de férias falsas ou pelas instalações esculpidas em torno de antigos rushes. Marie Losier faz retratos. Para além das pessoas, que gostamos de reconhecer, faz retratos da vida, de uma sociedade, de uma margem que poderia tornar-se norma se todos ousassem sonhar mais. Revela singularidades reconfortantes de discernir como estandartes de uma liberdade que ainda respira. O desenho e as imagens fixas fazem parte do seu trabalho há muito tempo, e Losier oferece-as para serem vistas cada vez mais frequentemente. E isso é prazeroso.
A artista pensa a exposição como uma obra por direito próprio, uma matéria por modelar, um híbrido entre um campo de rodagem, um fim de festa e uma revalidação do acto criativo. Banal como um doce de natas que se torna ecrã, caixas decoradas que acolhem números humorísticos em loop, cortinas de teatro que nos olham com um ar melancólico. Há um vaivém frequente entre a vida verdadeira e a vida encantada das obras. Apagam-se as fronteiras.
Amigos, amantes, mentores e cúmplices guiam a festa e desenham a obra. Aos poucos, durante quase 20 anos, de Nova Iorque a Paris, via Berlim, todos eles têm contribuído para o crescimento de uma tribo, um lar de criadores. Conservam, copiosamente, uma liberdade para ver e para pensar e a espontaneidade de fazer. Brincam a sério, como fazem as crianças.
Marie Losier gosta de pessoas, de orquestrar encontros, de oferecer e aprender com todos. Por isso, não é surpreendente que, para Excesso Chamalo, tenha convidado o artista colectivo David Legrand. Têm ambos a mesma filosofia, um trabalho generoso como curso de vida, necessário e em comunidade, uma ternura pelos gestos partilhados. Encontram-se no seu activismo, na sua preocupação pelos outros, por aqueles que não cabem numa caixa. As referências e as explosões de riso vão de par, os projectos comuns fazem ricochete.
Marie e David utilizam o cinema como medium, enquanto filmadora e filmador. Não se trata de fazer cinema, mas sim de mergulhar na ficção. A partir daí, todas as imaginações e disfarces são possíveis, e os delírios imperiosos. No seu corpete de cetim, um tenor majestoso convida-nos a comer-lhe a peruca; magnífica encarnação, ele é o mestre cor-de-rosa, o maestro de colher na mão que nos impulsiona para as fragrâncias xaroposas de um sonho acordado. Apresentada logo à entrada da exposição, na La Galerie du Cartable1, esta obra comum abre o olhar e o apetite. Excesso Chamalo ganha assim todo o sentido, acalenta os desejos enquanto a deambulação se envolve numa suave doçura.
O que emerge no universo dos dois artistas é a independência, o desabrochar de uma visão generosa e de mente aberta que se liberta das regras e do colete-de-forças normativo, retirando, simultaneamente, prazer do trabalho e da partilha dos pensamentos, das ideias e das loucuras. As suas práticas também se juntam num interesse comum pelos dispositivos de low-tech, numa certa bricolage, no fardamento, na performance e na transformação. Constroem encenações e um cinema poético cuja força é, justamente, sorvida no seu aspecto de faça-você-mesmo, simples, cheap, em jeito de acampamento.
Na instalação Chewingum Bomb, que David Legrand realiza para a exposição, estamos, justamente, perante a questão de um ser compósito ligado ao cinema através de ecrãs de marshmallow, uma passagem entre passado, presente e futuro, feita de vários elementos, incluindo um diálogo fictício2 entre Duras e Barthes. Há muito tempo que o artista cultiva o hibridismo nas suas investigações. Trabalha na fabricação de um fraseado, na transformação da voz, e elabora uma linguagem também ela compósita.
Estes elementos estão no centro das suas obras, e encontram-se necessariamente naquilo que não vemos, quando ele dirige os outros com a sua voz.
Aprecio os interstícios no trabalho dos artistas, os instantes conexos em que tudo acontece – a beleza imediata da eclosão de uma personagem, quando Joseph se torna Marguerite, por exemplo. Duras chega no momento em que Joseph perde o seu andar próprio3. Claro que também há Marguerite em Joseph... está lá tudo e é belo.
O sopro longínquo que percorre as bandas sonoras de Marie Losier é também algo reconfortante. Um envelope, como a lona que forma o telhado de uma cabana, uma recordação maravilhosa, um convite para a evasão. L’art de s’égarer ou l’image du bonheur4 [A arte de se perder ou a imagem da felicidade].
Com esta exposição, os dois artistas desdobram o seu universo distinto e comum. Alternadamente atrás e à frente da câmara, cultivam a nossa capacidade de deslumbramento, ao longo das histórias povoadas por animais, criaturas selvagens, fantásticas e híbridas, um caçador tirolês, uma panela voadora, noites brancas lisboetas, polvos na cabeça, marshmallowse lantejoulas.
Uma vez que a humanidade não sabe existir sem se ferir, sem se guerrear ou ter ciúmes, sem cobiçar a terra alheia, reconforta-me sempre cada vez que vejo artistas a resistirem. Através delas e graças às suas obras, oferecem lufadas de ar fresco, lutam contra as normas, as caixas, as castas, os géneros, os códigos, o pensamento correcto e os dogmas viscosos. Artistas insurgentes que nos lembram que podemos escolher protestar, desviar, pensar, olhar, colaborar e amar. A energia que Marie Losier propulsa nas suas criações e a sua dinâmica generosa dos encontros geram uma obra proteiforme e festiva. A artista renova-se, as suas obras mudam; dos primeiros filmes Xerox aos pés de urso de cerâmica, dos desenhos em papel de arroz às instalações, dos videoclipes às longas-metragens, o corpus da obra ganha consistência e conserva a sua essência. Assim, acolher o outro na sua alegre loucura dá à luz uma família, uma comunidade em constante movimento, que fabrica magia, que canta, que dança, que pensa, filma, traça e ri, que se farda e metaforiza... que, enfim, cria. A exposição é a sua casa, e é uma sorte que o mundo aí possa entrar.
— Émilie Flory
Paris, Junho de 2022
1. La Galerie du Cartable é uma obra conjunta de Fabrice Cotinat, David Legrand e Henrique Martins-Duarte, criada em 1999. Esta estrutura vídeo-portátil independente é um espaço de projecção e de criação nómada e performativa que convida, graças ao Cartable [mochila] vídeo, à participação de outros criadores audiovisuais.
2. Roland et Marguerite, diálogo fictício n° 7 de La Galerie du Cartable, 2007-2018.3. Ver o filme de Alain Cavalier, Josèphe, 2018, realizado durante a rodagem de Roland et Marguerite, considerado a segunda parte do filme.
4. Referência à obra de David Legrand e de Boris Lehman, L’art de s’égarer ou l’image du bonheur, HD cor, 2011-2014, 46 minutos. Texto de Walter Benjamin.
Traduzido do francês por Luis Lima.